segunda-feira, 25 de abril de 2011

A contradição como forma e o problema da abordagem em Tabacaria


Ao comentarmos sobre Fernando Pessoa, ou ao analisarmos qualquer uma de suas obras, podemos cair na opinião comum ou no senso igualmente comum compartilhados entre muitos estudiosos onde se define a poesia de Pessoa através de sua espiritualidade, ou misteriosidade, apenas. Outras vezes vemos equívocos de tentar atribuir uma explicação biográfica a todas as referências poéticas do autor. Como já advertia Ferreira Gullar: “(...) o mesmo fato não terá igual significação na vida como na obra, ou seja, devemos ler obra como obra e vida como vida. Sem confundi-las.” (GULLAR, 1996). Entretanto, Gullar mostra-se moderadamente extremista ao radicalizar a dicotomia Vida/Obra. Afinal, a obra para o artista corresponde a sua vida, uma vez tratar-se de seu maior interesse pessoal, onde é possível um escapismo para frustrações pertinentes a todos mortais descaracterizados pela sua sociedade.
Lucila Nogueira parece compartilhar do mesmo posicionamento de Gullar. No seu livro A Lenda de Fernando Pessoa, publicado em 2003, pela Associação de Estudos Portugueses Jordão Emerenciano, a autora dedica apenas quatro páginas para explicar, negativamente, a abordagem psicobiográfica adotada à Pessoa. Enquanto isso seu cerne consiste nos estudos ocultistas e espiritualistas encontrados como referência na obra do poeta. Assim defende:
(...) os limites existentes entre a noção cognitiva das teorias ocultistas – rosacrucianas ou teosóficas – e a ocorrência concreta de “comunicações ocultistas” como fator de criação poética em Fernando Pessoa, essa é a questão tanto apaixonante como delicada, a merecer específico cuidado. (NOGUEIRA, 2003: 36)
            A também poetisa Nogueira enxerga a literatura de Pessoa despregada do seu perfil psicológico, fundamentando sua tese na discutível inspiração mediúnica ou sobrenatural do escritor, embasando-se na premissa de que assim como Helena Blavatsky, teosofista ucraniana que teve algumas de suas obras traduzidas por Pessoa, tivera passado por delírios criativos com os quais escreveu alguns de seus livros. Deste modo o poeta utilizava-se possivelmente dos mesmos artifícios à sua poética (NOGUEIRA, 2003). É razoável pensar também, que uma vez amante das artes ocultas, iniciáticas e teosóficas, Fernando Pessoa carregava em sua poesia essa essência misteriosa, não apenas como inspiração sobrenatural, mas sobre tudo, como forma estética. Seu perfil psicológico, sua biografia pessoal e suas preferências podem definir seu estilo, todavia é na sua motivação e objetivos plásticos que encontraremos respostas aos principais questionamentos apontados nos poemas pessoanos. Adoto uma abordagem holisticamente direcionada, afastando justificativas demasiadamente radicais ou virtuais. O próprio Pessoa já advertia que mesmos seus personagens heteronômicos advinham de uma profunda reflexão e construção dramática (JAKOBSON, 1978).    
            Comparativamente como outro poeta de sua geração pouco se sabe com exatidão sobre sua vida. Tendo nascido em 1888 em Portugal, Fernando Pessoa muda-se com a mãe, irmãos e o padrasto para África, de onde apenas em 1896 voltaria definitivamente para seu país de origem. Esta parece ser uma das mais obscuras de suas fases, sendo as informações conseguidas somente através das instituições de ensino por onde estudou (NOGUEIRA, 2005). Comenta-se inclusive que guardaria um ressentimento por Durban, cidade sul-africana na qual viveu durante o tempo em que viveu no continente. Em toda sua produção pouca coisa encontra-se sobre a África, onde foi inclusive vítima de discriminação quando tentou entra numa Universidade Inglesa fora desclassificado, embora tivesse atingido a maior nota. Por isso não é de admirar que a África tenha seu lugar, mesmo que não declarado, na poesia de Pessoa; sua pluralidade cultural e religiosa, e até mesmo as injustiças e preconceitos que sofreu, influenciaram significativamente sua temática e forma poética.
            Frederico Borba afirma que em Durban Fernando Pessoa entre para o secundário e recebendo uma educação inglesa, familiariza-se com a poesia de poetas como Byron e Poe, fazendo deste estilo um dos traços de sua literatura. Em 1903 ingressa na Universidade do Cabo, a qual deixa pouco depois quando em retorno a Portugal matricula-se no Curso Superior de Letras. Conta-se que este também é abandonado pelo poeta, pois tivera sido expulso por motivos arbitrários, sendo mais uma das frustrações vividas pelo poeta, o qual não por acaso é um dos aspectos permanentemente presente nos poemas. Desta Pessoa passa a levar uma vida sem grandes prestígios, sendo obrigado a viver no fundo de uma leitaria em Portugal, estranhamente contraditório como tudo no poeta.
            Não impossível afirmarmos que todos estes eventos, e claro que neste trabalho aparecem resumidos, tenham causado profundas marcas na obra de Pessoas. Seus heterônimos muitas vezes são vistos como partes de um mesmo eu; outras como puramente criações plásticas provenientes apenas de uma profunda reflexão inventiva. Considero especialmente apropriado a junção dessas duas abordagens analíticas na compreensão do artista. Sua genialidade deve ser vista como parte de um processo cognitivo, como transpiração poética e também como resultado experiencial de fatos reais misturados sempre com um posicionamento pessimista em relação a tudo que o cerca.
            Em Tabacaria, poema escrito em 1928 sob o pseudônimo de Álvaro Campos, Pessoa consegue reunir o que de melhor lhe marca poeticamente, ao mostrar como a contradição é inerente ao seu ser, ou do seu heterônimo, para alguns. Gullar afirma em seu texto que embora o poeta tenha caracterizado especificamente cada personagem do trio com personalidades singulares e histórias também diversas, seu trabalho se diferenciaria do de um dramaturgo. Fernando Pessoa se considerava dramático em essência, e talvez fosse, mas principalmente sua criação poética não parecia suficiente para caber em um só (JAKOBSON, 1978; GULLAR, 1996). Foram necessárias mais três Pessoas para dialogar consigo mesmo, compartilhando da frustração e incoerência humanas.
            No início do poema Pessoa reitera três vezes sua incapacidade de ser alguma com o objeto direto de vazio:
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.             
            Depois o poeta contradiz estas primeiras assertivas no trecho:
(...) tenho em mim todos os sonhos do mundo. 
            Com o recurso dos oximoros, e usando poucos e simples léxicos, Pessoa consegue externar o que lhe definia em sua poética. Incoerência. Na sua estrutura, o poema se identifica pelo contraponto de afirmações-negações, contradições que vão se tornando mais evidentes à medida que adentramos no lirismo e deixamo-nos ser convencidos pelos seus argumentos, os quais são em si mesmos replicados. Pinta-se um quadro de fim de vida, onde o homem reflete em toda a sua vida e passa a descobrir que tudo que existira nos sonhos não eram apenas mais do que ilusões; não havia nada de concreto. A vida torna-se óbvia e frustrante, contraditória desde à forma, e incoerente até no fim.
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa.
            No texto, o poeta constrói uma imagem de reflexão acerca da tomada de decisões e os trilhos que percorreu em sua vida. Parece estarmos diante de alguém que chegando ao fim começa a pensar no começo, frustrando-se por já não poder mudar mais nada a respeito, mas ao mesmo tempo concebe-se como sendo vítima de um destino inevitável.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
            Sobretudo, Tabacaria é um poema de frustrações. Frustrações do que se sonhou e nunca realizou; do que sempre quis e nunca conseguiu; da busca pela genialidade e sua impossibilidade de encontrá-la; de nunca ter amado nem se apegado a uma convicção. Ao abstrair Álvaro de Campos, Pessoa o usa para desenvolver sua ideia de que viver parece uma estupidez, onde nada vale de fato a pena, nem nunca se conseguirá mais do que a morte e o esquecimento. Suas reflexões mentais começam a tomar um rumo de contrapontos, do que se disse sobre o que diz agora. Na sexta estrofe, por exemplo, afirma-se que apenas os doidos têm certeza, e mesmo estando ele próprio lúcido, não há certeza em sua sensatez. Por fim, aparentemente todos nós viramos estrume, o que é contradito quando se anuncia que o mundo pode ser conquistado por alguns, os quais tendo genialidade suficiente sobrepõem-se aos outros, mesmo não havendo inovação ou criatividade em ninguém, segundo discurso do poeta.  
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio?
(...)
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
(...)
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.


Referências Bibliográficas            
BARBOSA, Frederico. O Enigma em Pessoa – Introdução à obra de Fernando Pessoa. In http://armazemdeversos.blogspot.com/2010/05/o-enigma-em-pessoa.html. 27 de Maio de 2010.
GULLAR, Ferreira. A razão Poética. In http://www.jornaldepoesia.com.br: São Paulo, 1996.
JOKOBSON, Roman. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
NOGUEIRA, Lucila. A Lenda de Fernando Pessoa. Recife: Associação de Estudos Portugueses Jordão Emerenciano, 2003. 
______. O silêncio da África em Fernando Pessoa. In Revista de Cultura#45: Fortaleza, São Paulo, 2005.
PESSOA, Fernando. Tabacaria. In: http://www.insite.com.br/artes/pessoa/ficcoes/acampos/456.php

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
Centro de Artes e Comunicação – Departamento de Letras
Resenha Crítica
Displina: Teoria da Literatura II - Poesia
Professora: Lucila Nogueira
Aluno: Tiago Lessas[1]


[1] Tiago Lessas Almeida é aluno do curso de Letras/Licenciatura – Língua e Literatura Inglesa da Universidade Federal de Pernambuco.  

A contradição como forma e o problema da abordagem em Tabacaria[1]


[1] A resenha resultou de um trabalho orientado pela Professora Lucila Nogueira durante a cadeira de Teoria Literária II – Poesia.



Um comentário:

  1. Perfeito Tiago!
    Você abordou todas as discussões nessa resenha.
    Adorei!
    Lane

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