quinta-feira, 24 de março de 2011

Carlos Drummond e Carlito.

Amados de Letras,
Não sei se entendi perfeitamente...esse blog é dedicado para que postemos e compartilhemos nossos textos,atividades,resenhas e etc..correto?
Bem, em sendo, vou começar então - até para encorajar a todos os alunos a também o fazê-lo - compartilhando meu texto sobre Carlos Drummond de Andrade, relacionando seu poema "Canto ao Homem do Povo - Charles Chaplin" com a ideologia drummondiana.

Abraços!

O áporo Chaplin: a flor nascida no asfalto

O mundo piche e brita. A emulsão asfáltica dos homens. “Que fazer, exausto, / em país bloqueado, / enlace de noite / raiz e minério?”. Ao poeta resta fazer a rosa – a Rosa do Povo, a rosa mais-que-rosa, a rosa-palavra nascida no asfalto: a única capaz de romper “o tédio, o nojo, o ódio”. Carlos Drummond de Andrade, com seu poder de rosa e seu poder de palavra, busca vencer a impotência nossa de cada dia (aquela que nos enluta a roupa e nos faz seguir de branco pela rua cinzenta) com o seu livro mais social e, paradoxalmente, o mais complexo, cuja linguagem mais se distancia do “povo” com o qual o bardo se preocupava. Mas é assim mesmo, no contexto de um país bloqueado, de um mundo bloqueado, que nasce a necessidade da flor, da orquídea antieuclidiana, da rosa, do povo. O poema “Canto ao homem do povo – Charles Chaplin” é, talvez, a expressão mais profunda e menos óbvia dessa necessidade que tem o artista de resistir ao asfalto-morte, ao piche-luto, à noite-brita, ao bloqueio-raiz-minério. O vagabundo é feio, seu nome não é conhecido. Lutuoso, na calçada cinzenta, o vagabundo é feio. É feio. Mas é uma flor. Foi necessário que um poeta viesse, sentasse no chão da capital do país às cinco da tarde e passasse a mão sobre essa forma insegura de homem – Carlito – para revelar-lhe a rosa. Drummond revela, assim, o papel do artista, de forma intersemiótica (ele próprio, na poesia, e Chaplin, no cinema), na necessidade de denúncia social contra a alienação e as injustiças.

Para os olhos superficiais – e quiçá até alienados pela sociedade – a leitura do poema “Canto ao Homem do Povo - Charles Chaplin” mostrará, simplesmente, o profundo conhecimento de Drummond da obra de Charles Chaplin, devido aos versos altamente imagéticos e descritivos de cenas dos diversos filmes de Carlito e de sua própria aparência física, aludindo, para uma simples homenagem, a um dos grandes artistas do cinema. No entanto, o poeta, como sempre, nos entrega suas “mil coisas aparentemente fechadas” para ler – e vale salientar que essas “mil coisas”, “quanto mais obscuras mais falam”. Por isso, podemos observar a ideologia de Drummond que subjaz à obra (não apenas ao poema em si, mas a todo o livro que o contém). Drummond usa sua poesia para revoltar-se “sem armas”, incumbindo seu texto de carregar sua ideologia, representando a triste realidade social, denunciando e engajando-se “sob a pele das palavras”, mesmo nelas havendo “cifras e códigos”. Sabemos que o poema foi escrito em um contexto sócio-histórico impossível de ignorar – principalmente para um artista socialmente responsável: o fim da II Guerra Mundial, e, no Brasil, especificamente, o triste período do Estado Novo de Vargas. Com certeza, podemos dizer que o Drummond-brasileiro encontrava-se “em um país bloqueado”, mas também podemos dizer que o Drummond-ser-humano (como em tudo mais, nossa gente se parece) encontrava-se “poeta de um mundo caduco”, assim como Carlito – já tão inseparavelmente fundido com seu “criador”, Charles Chaplin. Assim, Drummond vê na obra do cineasta inglês erradicado nos EUA a descrição-denúncia da realidade cotidiana, dos acontecimentos comuns e ignorados, mas que formam a teia real e alienante que prende a população. Drummond e Chaplin munem-se de suas armas-arte feitas de palavrimagem para denunciar a luta, a fome, a pobreza, a solidão e o sofrimento de “qualquer homem comum de 25 a 50 anos, em qualquer país do mundo, que aspira à dignidade”, como diria Chaplin.

Durante todas as cinco estâncias do poema, observamos não apenas a exaltação a Chaplin-Carlito, mas também o reconhecimento da importância de sua obra como clamor social; e mais: vemos Drummond utilizar-se, de igual modo, de sua arte para fazer atentar os olhos à realidade social.

Na primeira estância, vemos o poeta falar da necessidade de tal denúncia ser liberada. Drummond não se intimida com as diferenças sociais e culturais, pois, mesmo sendo ele um poeta “vindo da cidadezinha do interior”, suas dores e lutas são as mesmas de todos os homens retratados por Charles e Carlos – personae estas descritas nas estrofes 9ª e 10ª. Essa semelhança é reafirmada na estrofe 3ª desta estância. Assim, Drummond envia sua rosa-palavra-poder, sua flor feia – mas flor – sua flor absurda, sua flor pisada, “por via postal ao inventor dos jardins”, mesmo que esse inventor não passe de um re-inventor, de um “hipócrita leitor, seu igual, seu irmão”, como atestou o poeta de outras flores – um outro Charles… Baudelaire.

A segunda estância é iniciada com um estouro de imagens poéticas, banhadas, todavia, no negro e no luto. Carlito, enegrecido, está em um impossível baile sem as tão almejadas orquídeas “antieuclidianas”. Vemo-lo, pois, prostrado, vencido, “sem achar escape”, “em país bloqueado/ enlace de noite/ raiz e minério”. A impotência do homem perante o mundo enlutado que, entre “melancolias, mercadorias” espreitam-no, grita em cada verso, revelando um homem “preso à (sua) classe e a algumas roupas”. Estamos “condenados ao negro”. Pessimistas, analisamos, rotulamos e determinamos que nenhum homem fará a diferença; decretamos que estamos todos destinados ao calabouço da mesmice. Mas, de repente, a luz explode em Carlito! Suas imagens brancas contrastam gritantemente com o negro que nos inundara até poucos versos antes. Eis Carlito e sua boca experiente, com risos-aurora e denúncias mil. Retomando a ideia da 8ª estrofe da 1ª estância, vemos que aqueles que “estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo”, procurando anestesiarem-se do profundo negro vivido, encontraram salvação, serenidade e descanso no escuro das imagens, na bengala mágica. Somos, assim, retirados da negra e alienante realidade, e despertamos para o revolucionar – “e vamos (...) arrebentar vidraças,/e vamos jogar o guarda no chão,/e na pessoa humana vamos redescobrir/aquele lugar – cuidado! – que atrai os pontapés: sentenças/de uma justiça não oficial.”

A terceira estância do poema nos remete diretamente aos filmes “O Garoto” e “Vida de Cachorro”, bem como às artimanhas do sagaz Carlito para driblar a fome e esquivar-se da cruel realidade. Desta forma, a estância segue denunciando a fome que dilacera e mata cruelmente aos pobres e aos não-convidados às grandes ceias daqueles que se fartam.

Igualmente, a estância seguinte traz imagens que nos remetem às obras chaplinianas e, consequentemente, à solidão e às lutas mil do homem ordinário, à grande diversidade e às riquezas que existem escondidas dentro de cada um, esperando olhos que queiram descobri-las, sem sucesso, sem pretendentes. A penúltima estância enfatiza a grande solidão dos simples homens, de amizades efêmeras, numa sociedade efêmera, rotuladora, superficial e interesseira. A estância se estende e denuncia não apenas a solidão que invade os relacionamentos interpessoais, mas também aqueles travados entre a sociedade e os homens, o sistema capitalista, a religião, as instituições de ensino... enfim, com as principais instituições socializantes com que o homem se depara e trava diálogos importantíssimos durante sua caminhada. Terminamos a leitura da primeira estrofe cansados, o ritmo frenético de leitura forçado pelas repetições e pontuações nos remete à Revolução Industrial, à supervalorização das máquinas e à desvalorização do humano. Este, na verdade, passa a ser um pedaço da máquina, facilmente substituível e ignorado em suas idiossincrasias. Uma peça como outra qualquer. Drummond tenta – como poeta que não se prende a um “mundo caduco” – colar os pedaços de Carlito, colar nossos pedaços, colar seus pedaços. Inútil. Não só estamos pulverizados, mas o mundo também... e, portanto, “mal retemos (...) o mesmo homem” em nós. Ao listar as diversas e humildes ocupações representadas por Carlito, Drummond nos mostra que, em virtude do modelo Fordista de divisão de trabalho (criticada em “Tempos Modernos”), o homem se vê pulverizado, dilacerado em mil pedaços, dos quais apenas um é valorizado e escolhido pela sociedade. Enquanto os homens da sociedade atual (ainda, infelizmente, com ressalvas) vêem-se multifacetados e da valorizados em suas idiossincrasias, vemos que Drummond faz coro à denúncia feita por Chaplin em seu filme, mostrando a situação absurda e homogeneizante que os homens são obrigados a viver, quebrado em pedaços. Ainda na última estância, o homem sofre um processo de metonímia sendo reconhecido e descrito por suas mãos “treinadas” igualmente à multidão de analfabetos funcionais – “mão sabida / no bater, no cortar, no fiar, no rebocar”.

O poema drummondiano termina com sopros de esperança. Mesmo dilacerado, e cheirando a “peça desmontada”, eis que o homem se levanta: “as molas unem-se,/o tempo anda”. Mas logo o homem é puxado à realidade, engolido pela lógica do sistema, abortando seus desejos e verdades ocultas. Drummond, todavia, não faz crítica vazia ou radicalista: ele reconhece a importância do trabalho, repudiando, todavia, a alienação.

E o filme acaba. “Foi bom que te calasses”, Carlito. Foi bom, porque o choque de realidade e as tuas ironias penetrantes nos faziam mal, nos diziam da realidade que preferimos não enxergar. “E um bolo, um engulho/formando-se”. Mas, para nosso alívio, vemos os créditos, aquelas “palavras subindo” e, em nossas mentes, outras tantas palavras vão-se formando. Depois de tudo o que vimos, impossível é não nos questionarmos.

E acaso acaba o poema? Tuas palavras, Carlito, ainda que mudas para alguns, ainda que desmoralizadas, ecoam em nossas mentes e são “salvas, ditas de novo”. Descobrimos, por este instante, o “Poder da voz humana inventando novos vocábulos e dando sopros exaustos” e a “Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo”. E há a catarse. Saídos da sala de projeção ou da mesa de leitura, é possível dizer: “Mas que bom que não é conosco!... mas agora precisamos ir trabalhar”. Ah, Carlito Drummond, tua pena e tua rosa seguem numa estrada de pó e esperança. Palavrimagem. The End.

Nenhum comentário:

Postar um comentário